ARGUMENTOS VERSUS CITAÇÕES

VISÃO ESPÍRITA DA BÍBLIA - 34 por J. Herculano Pires
34 - ARGUMENTOS VERSUS CITAÇÕES

*[Contextualizado por Walter de Carvalho, QUE SEMPRE DIGO QUE: "A MELHOR RELIGIÃO É A QUE FAZ O HOMEM MELHOR. PODE SER QUALQUER UMA OU NENHUMA. O FAZER O BEM É A ESSENCIA DA VIDA, O AMOR AOS SEMELHANTES"! DEUS É AMOR!]*
Duas posições numa polêmica sobre a Bíblia - Das "palavras vazias" à avalancha de versículos - A posição de Kardec: a Bíblia não é um erro, os homens é que se equivocam ao interpreta-la - Do pingue-pongue das citações ao esclarecimento do problema. Quem leu o artigo do prezado confrade Mário Cavalcanti de Mello, "Esclarecimentos Necessários", publicado na última edição de "Mundo Espírita", sem ter lido os meus artigos anteriores, a que aquele se refere, há de ter pensado que andei fazendo demonstrações retóricas neste jornal, ao tratar do problema bíblico em face do Espiritismo.
O meu caro antagonista chegou a declarar, com todas as letras, que eu somente escrevi: "até hoje, coisas vazias e sem consistência". Louva-se o confrade Cavalcanti no seu sistema de citações do texto bíblico, e entendo que o meu dever é refutá-lo "com a Bíblia na mão".
Desde o meu primeiro artigo, entretanto, deixei claro que não me interessava, como não pode interessar-me, um simples bate-boca no estilo de "a Bíblia disse" e "a Bíblia não disse". Por que isto seria a coisa mais estéril do mundo. Afinal de contas, nem eu, nem o meu caro confrade, somos teólogos ou discutidores de sacristia. O que me interessa, e o que penso que deve interessar aos confrades que se derem ao trabalho de acompanhar esta polêmica, é apenas saber se a Bíblia é um livro falso e sem sentido, ou se realmente é, como Kardec no-la apresentou, o monumento imperecível da I Revelação.
É claro que não custa ao confrade Cavalcanti, como não custaria a mim ou qualquer outro, tomar um volume da Bíblia, folheá-lo numa hora de calma e copiar de suas páginas os trechos que mais interessassem aos nossos pontos de vista, para com eles bombardearmos a boa fé dos leitores. A Bíblia está aí, por toda parte, ao alcance de todos.
Quando o confrade Cavalcanti diz que em tal passagem bíblica existe tal coisa, me parece que ninguém porá em dúvida a sua afirmação. Nem eu pretendi, a qualquer momento, negar os morticínios de que a Bíblia está cheia. Bem vazio seria, ou bem louco, se o pretendesse, pois qualquer cidadão poderia pegar na estante o seu volume da Bíblia e ver com os próprios olhos que eu estava fraudando ou desconhecendo por completo o assunto em causa.
Não se trata, pois, de alinhavar textos. Esse alinhavo o confrade já fez, até em excesso, no seu livro 'Da Bíblia aos nossos dias' e nos artigos publicados neste jornal.
Quando dei a minha primeira opinião sobre o livro do confrade, - uma simples e pequenina resposta a um leitor, na minha seção do "Diário de S. Paulo", - não tive a intenção de fazer polêmica. Fui breve e incisivo. Disse o que pensava do livro, cumprindo um dever a que não podia fugir: o de responder ao leitor. O confrade Cavalcanti aborreceu-se com a minha franqueza e despejou sobre a minha cabeça atônita uma avalancha de citações bíblicas e de opiniões eruditas sobre a Bíblia. Respondi, tentando colocar as coisas nos seus devidos lugares. E depois, quando nos encontramos em Niterói, pessoalmente procurei, de novo, colocar o problema. Foi então que o confrade me fez aquela promessa que eu cobrei num dos meus últimos artigos: o de não fugir da arena. Mas como, logo em seguida, voltou a se embarafustar pelo labirinto das citações bíblicas, senti-me no direito de lhe pedir que não saísse do terreno escolhido. Vejo, agora, que havia um equívoco em tudo isso. Enquanto eu pensava que o confrade queria discutir o problema bíblico em seu aspecto global e doutrinário, o confrade pensava que eu o desafiava para um pingue-pongue de citações bíblicas.
Esclarecendo o equívoco, só tenho a declarar que para isso não me presto. Nunca fui bom nessas competições. Não conheço os golpes e contragolpes que dão a palma da vitória aos jogadores inveterados de bolinhas e raquetes. Mas, se o confrade quiser continuar discutindo o assunto em seus aspectos essenciais, então estarei às suas ordens. Vamos, entretanto, para que as coisas fiquem suficientemente claras, procurar situar o problema.
Significação e importância da Bíblia
O que refuto, no livro do confrade Cavalcanti de Mello, não são as citações bíblicas, mas a sua concepção da Bíblia. Como se pode ver até mesmo pelo seu último artigo, o confrade quer provar que a Bíblia é um livro falso, forjado por espertalhões. Essa concepção é antiespírita, como já o demonstrei, em meus artigos anteriores, com citações textuais de Kardec. O codificador jamais pensou semelhante coisa da Bíblia. Desde O Livro dos Espíritos, o codificador sustentou a necessidade de uma interpretação compreensiva da Bíblia. Lá encontramos, por exemplo, no capítulo terceiro da I Parte, número 59, em "Considerações e concordâncias bíblicas relativas à criação", uma excelente lição de interpretação bíblica, e esta advertência sempre oportuna: "Deve-se concluir que a Bíblia é um erro? Não; mas que os homens se equivocaram ao interpretá-la". Para que não haja dúvidas a respeito, verifiquemos o texto original, na edição francesa do "Griffon D'Or", de 1947, à página 88: "Faut-il en conclure que la Bible est une erreur? Nun; mais que lês hommes se sent trompés em l'interprétant".
Esta foi sempre a posição de Kardec. Sabemos todos que o codificador não gostava de se contradizer, nem de fazer afirmativas levianas. O confrade Cavalcanti de Mello respondeu-me que Kardec havia usado de diplomacia, ao que lhe retruquei, lembrando a seriedade do codificador, que nunca usou de artimanhas, diplomáticas ou não, em assuntos de tão grande importância. Nos livros subsequentes da codificação, essa posição de Kardec não somente se reafirma, como se esclarece. Foi o que demonstrei, por exemplo, citando o trecho de A Gênese em que Kardec fala da necessidade de descermos "ao âmago do pensamento", para compreendermos os absurdos aparentes do texto bíblico. Mas o confrade Cavalcanti de Mello não pensa assim. E apanha frases de Kardec, que lhe parecem contradizer aquela sensata e firme do codificador, para querer convencer-nos de que a razão está do seu lado.
Não digo aqui, nem o disse jamais, que o confrade Cavalcanti tivesse feito tal coisa de má fé. Longe de mim semelhante propósito. Acho apenas que o confrade está demasiadamente empolgado pelas ideias que esposou, a ponto de não ver o conjunto da opinião de Kardec, vendo apenas as partes da mesma que lhe interessam. E disso dei um exemplo, quando mostrei que o confrade, à página 31 do seu livro, transcreveu todo um trecho do A Gênese e o interpretou a seu modo, sem ver uma pequena ressalva feita no meio da frase pelo codificador. Kardec diz ali que a ciência demonstrou "inquestionavelmente os erros da gênese mosaica", o que agradou muito ao confrade. Mas Kardec acrescenta: "tomada ao pé da letra", e o confrade não viu nem ouviu isso.
Contentou-se tanto com a primeira parte, que nem sequer ligou à segunda, de fundamental importância. Além disso, como todos sabem, Kardec apresenta o Espiritismo como o Consolador prometido por Jesus, dando-lhe a expressiva e justa designação de Terceira Revelação. Terceira por que? Porque houve uma Primeira Revelação, feita a Moisés, e representada pela Bíblia, e uma Segunda Revelação, feita por Jesus e representada pelos Evangelhos e a do Espiritismo. Como admitir-se que Kardec pusesse uma pedra falsa como fundamento do edifício das Três Revelações? Como admitir que ele pudesse usar de "diplomacia", ou seja, de artimanhas diplomáticas, para impingir ao mundo o Espiritismo?
Que nos perdoe o confrade Cavalcanti de Mello [e a Escola de Niterói], mas a sua posição, nesse problema, é simplesmente insustentável. Por mais citações bíblicas que o confrade pretenda fazer, jamais conseguirá provar, aos estudiosos desapaixonados, que Kardec pensava da Bíblia o que está escrito no seu livro por nós contestado. A Bíblia significa, para o Espiritismo, segundo a opinião de Kardec, de Léon Denis, e de tantos outros espíritas do Brasil e do mundo, um livro básico, cheio de verdades sublimes, de que até mesmo Jesus se serviu para a sua pregação do Reino. Verdadeiro monumento literário de um passado longínquo, representa um marco indelével da evolução espiritual do homem. Pouco nos importa que o Pentateuco tenha sido escrito por Moisés ou Hilquias, ou que os vários livros da Bíblia estejam repletos de episódios sangrentos e mesmo de relatos de coisas imorais. Esses episódios e esses relatos se referem a um passado de milhares de anos, e são, por si mesmos, testemunhos escritos da evolução humana. Muitos deles são alegóricos, como advertiu Kardec, e se hoje nos causam espanto, ontem serviam para despertar consciências.
O confrade Cavalcanti de Mello analisa a Bíblia como se analisasse um livro dos nossos dias, esquecido, como já afirmei numerosas vezes aqui, de que se trata de um velho monumento, de um marco representativo de outras Eras e de outra maneira de ver, de pensar e de dizer as coisas. Kardec chama a atenção dos ledores da Bíblia para a necessidade de se ter em conta "a forma alegórica peculiar ao estilo oriental". Entretanto, vem o confrade Cavalcanti e me diz que posso "resolver as tradições obscuras de todos os povos", que não encontrarei "coisas tão tristes, tão degradantes e tão profundamente desmoralizantes", como as que se encontram na Bíblia. Ora, parece-nos que, nesse caso, quem está sendo desmentido não sou eu, mas Kardec. E não somente ele, mas todos os orientalistas. Porque coisas tristes, degradantes e desmoralizadoras, segundo o nosso conceito, encontram-se também nos livros bramânicos, nos textos persas, nos islâmicos e outros. Mas o que importa, como acentua Kardec, é "descer ao âmago do pensamento", é não nos deixarmos prender pelas aparências.
Que diria o confrade, se soubesse, por exemplo, que os famosos "Rubaiyat", de Ornar Khayyam, geralmente interpretados entre nós como céticos e libertinos, são considerados no Oriente, segundo o testemunho de B. Nicolas, que viveu muitos anos na Pérsia, como versos místicos-alegóricos? Khayyam, que nunca fora, aliás, um libertino, mas um homem de pensamento, um astrónomo e um místico, aparece ali como uma espécie de profeta, ensinando a mais alta moral. Almansur Haddad afirma, ainda agora, em recente edição dos Rubaiyat, que: "A significação ascético-mística da poesia de Ornar Khayyam é a habitualmente aceita na Pérsia". E essa edição, da Bolsa do Livro, de São Paulo, traz um prefácio do sr. Yadollah Azodi, ministro do Irã no Brasil, que declara o seguinte: "Temos nos "Rubaiyat" um livro de profecias, um catecismo filosófico, um invólucro de sabedoria".
Veja o confrade Cavalcanti de Mello como Kardec tinha razão, ao advertir que precisamos ler a Bíblia com "olhos de ver". Os cânticos de Salomão, como as matanças e as imoralidades que o confrade não se cansa de ver e citar, no texto bíblico, não têm sentido absurdo que a nossa malícia lhes atribui. Os tempos são outros. Os costumes mudaram. A maneira de ver e de exprimir as coisas transformou-se profundamente. Não podemos acusar de embusteiros, e espertalhões, e malandros, os homens que, inspirados pelos melhores propósitos, realizaram, há milhares de anos, a codificação bíblica. Devemos um pouco mais de respeito a essa gente e às suas intenções. E nós, espíritas, mais do que quaisquer outros, estamos no dever de compreender essas coisas, porque conhecemos o processo complexo da evolução humana, em todos os seus aspectos.
O erro dos homens
A diferença fundamental entre a posição do confrade Cavalcanti e a posição de Kardec é a seguinte: este condena o erro da interpretação da Bíblia pelos homens, enquanto aquele condena a própria Bíblia como um erro. É isso o que eu discordo no livro do confrade Cavalcanti. A frase de Kardec, no Livro dos Espíritos, que acima transcrevemos, é suficiente para mostrar o que dissemos. Kardec afirma, de maneira incisiva, que a Bíblia não é um erro, mas que o erro está na interpretação da Bíblia pelos homens. O confrade Cavalcanti, pelo contrário, quer provar que a Bíblia é um livro falso, escrito por farsantes. E pensa, mesmo, que já o provou!
Curioso verificar-se como o confrade repisa textos de Kardec sem os compreender, tirando do mesmo apenas o que convém à sua tese. Ainda neste último artigo vem a reprodução textual daquele belo trecho de A Gênese, em que Kardec aconselhou: "Não rejeitemos, pois, a gênese bíblica; pelo contrário, estudemo-la, como se estuda a história da infância dos povos. É ela uma espécie rica de alegorias, cujo sentido oculto é preciso procurar, comentar e explicar, por meio das luzes da razão e da ciência". A transcrição prossegue, para depois o confrade afirmar que está de acordo com ela ao combater "os erros da gênese bíblica". Faltou, ainda uma vez, a ressalva de Kardec: "interpretado ao pé da letra". Porque o confrade só está de acordo com Kardec, nesse terreno, quando põe de lado essa ressalva. E no entanto, sou eu o acusado de malabarismo intelectual! Mas não se pense que desejo devolver a acusação. Pelo contrário. Não ponho em dúvida a sinceridade do confrade. O que penso é que ele se encontra demasiado empolgado pelas suas ideias, a ponto de não enxergar em Kardec tudo quanto as contradiz.
Compreendo que o confrade queira combater o apego de certas religiões ao texto bíblico, à letra que mata. Mas não compreendo como, para fazer isso, ache necessário colocar o Espiritismo numa posição tão incômoda diante da Bíblia. Todo espírita suficientemente conhecedor da sua doutrina sabe que não deve emaranhar-se nos velhos textos. Mas sabe, também, que não pode aceitar as tentativas materialistas desses textos, em que tanto se apoia o confrade Cavalcanti de Mello.
Há um abismo entre a aceitação dogmática da Bíblia e a sua rejeição erudita, baseada em pesquisas e interpretações formais do texto, realizadas por homens sem a devida formação espiritual. Mas no meio desse abismo existe um caminho seguro, que é o traçado por Kardec: o caminho da interpretação compreensiva, da interpretação sem apego e sem prevenção. Esse é o único caminho verdadeiramente espírita, e pesa-me que o confrade Cavalcanti não o tenha trilhado.
Não era minha intenção estender-me tanto no presente artigo. Mas o confrade me fez tais acusações, que me vi obrigado a repisar alguns assuntos, e a demorar-me demasiado em outros. Que os leitores de Mundo Espírita me perdoem este excesso. Às avalanchas de citações bíblicas do meu prezado opositor, vi-me obrigado a opor uma avalancha de argumentos. Peço a Deus que o confrade Cavalcanti não considere todos estes argumentos como palavras vazias, pois estou convencido de que eles contêm alguma coisa. Não contêm, em verdade, desmentidos às citações do confrade, pois jamais pretendi duvidar das mesmas. Com boa vontade, porém, é possível que o confrade vislumbre, nestas linhas, o desejo de colocar o problema bíblico em termos de compreensão geral, e não de estéril e infindável discussão das misérias do texto. Emmanuel, nesse belo livro que é O Consolador, reafirma, em poucas linhas, de uma clareza admirável, a posição de Kardec, ou seja, a posição do Espiritismo em face da Bíblia. É pena que o confrade Cavalcanti não tenha lido as respostas de Emmanuel a respeito do assunto, antes de se abalançar à difícil tarefa de mostrar que os espíritas devem encarar a Bíblia como uma simples manobra de espertalhões judeus. Por mais teimosos que sejamos, um raio de luz das esferas mais altas sempre nos faz bem.

Comentários